CMA-J

Colectivo Mumia Abu-Jamal

Carta aberta pelo direito à habitação

 
Portugal vive, há décadas, sem uma política de habitação substantiva, coerente e continuada. Apesar do quadro constitucional vigente, o direito à habitação não é – na prática – reconhecido como fundamental à vida humana, sendo a habitação sobretudo encarada como uma mercadoria e um investimento. Só assim se explica, aliás, o impulso que a especulação imobiliária e o endividamento das famílias conheceram nas últimas décadas, concomitante com o progressivo abandono dos centros históricos das cidades e a degradação do seu edificado (existem hoje cerca de 735 mil alojamentos devolutos), responsáveis por uma preocupante perda de vitalidade urbana.
 
Por outro lado, é também desse modo que se explica o crescimento desordenado das periferias suburbanas, que contribui de forma decisiva para a deterioração da qualidade de vida, a diminuição do acesso a equipamentos e serviços, e a constrição da mobilidade de inúmeras pessoas. A ausência persistente de uma política integrada que defenda o direito à habitação tornou-a, tal como aos processos de urbanização, refém dos interesses especulativos imobiliários e da construção civil.
 
Em detrimento da reabilitação e do arrendamento, privilegiou-se a construção de raiz e a aquisição de casa própria (76% dos portugueses são hoje ”proprietários”), mediante processos muito expressivos de endividamento bancário das famílias (80% do endividamento familiar é destinado à aquisição de habitação) e do país (68% do total da dívida privada portuguesa resulta do crédito imobiliário a famílias e empresas). A braços com os encargos das prestações, que não raras vezes atingem os 40 anos, as famílias viram severamente limitada a sua capacidade para a construção de projetos de vida autónomos e independentes.
 
O mercado de arrendamento (18% do total de alojamentos) e, de modo ainda mais relevante, o mercado de habitação social (3% do total de alojamentos, estando ainda por concluir o Programa Especial de Realojamento, PER, iniciado em 1993), deixaram há muito de fazer parte das políticas públicas de alojamento. Com o agravar da atual crise - ela própria fortemente enraizada em processos especulativos - o direito à habitação encontra-se por isso cada vez mais comprometido. A subida do desemprego, a quebra acentuada dos rendimentos das famílias e o aumento do custo de vida tem vindo a conduzir a um aumento muito significativo das situações de incumprimento bancário, existindo hoje cerca de 140 000 famílias sem capacidade para pagar a prestação da casa. Perante isto, os governantes têm feito uma opção clara: proteger os bancos e não as pessoas, perpetuando assim o ciclo de endividamento e não assegurando alternativas dignas a quem perde a sua casa. Paralelamente, a nova lei do arrendamento vem facilitar o despejo de quem não consegue pagar a renda, criando condições cegas para o aumento das rendas antigas, que irá atingir, sobretudo, reformados e pensionistas. Por outro lado, a oferta de habitação social não responde minimamente às crescentes necessidades.
 
O número de pedidos tem aumentado em todas as autarquias e estas não demonstram, manifestamente, ter capacidade para dar resposta. Prossegue também, por último, a demolição sistemática de habitação auto-construída, sem que se acautele minimamente o realojamento de quem aí habita, mesmo quando recenseado no PER. Em suma, o domínio da habitação é uma das esferas da política social pública em que se tem demonstrado, de modo mais evidente, um profundo desrespeito pela dignidade humana, ao mesmo tempo que se promove a culpabilização individual de quem não consegue aceder à habitação ou fazer face aos encargos a ela associados. O problema, porém, não é individual mas sim social e político. E, por isso, propomos as seguintes medidas: - Não permitir, em nenhuma circunstância, processos de despejo em que não estejam devidamente asseguradas alternativas dignas ou meios de subsistência suficientes, devendo forçosamente analisar-se a situação familiar e encontrar-se os meios adequados para o apoio às famílias em caso de incapacidade financeira para preservar a habitação; - Suspender a demolição das habitações dos moradores não abrangidos pelo PER e proceder à revisão e atualização dos levantamentos realizados ao abrigo desse programa; - Dotar o IHRU dos mecanismos necessários ao desenvolvimento de programas de apoio ao acesso à habitação e reabilitação urbana; - Obrigar à colocação, no mercado, dos fogos devolutos, penalizando de forma eficaz o abandono dos alojamentos com fins especulativos; - Criar um plano de reabilitação do parque habitacional que dê prioridade a este processo, em detrimento da construção de habitações novas, tendo em vista recolocar os fogos no mercado a preço acessível; - Rever a nova lei do arrendamento urbano, de modo a salvaguardar o direito dos inquilinos à habitação; - Dotar as autarquias e o Estado de meios eficazes de combate à especulação imobiliária e à corrupção urbanística, simplificando e tornando mais transparente a legislação nos domínios do planeamento e urbanismo, e tornando os municípios menos dependentes do licenciamento para se financiarem (o que implica rever, a médio/longo prazo, a lei das finanças locais); - No caso das famílias que não conseguem pagar os seus créditos à habitação, devido a situações de desemprego ou pela redução substancial do rendimento disponível, a entrega da casa deve significar o fim de quaisquer compromissos com a banca, sendo de incentivar que essas famílias se tornem inquilinas no mesmo alojamento, com uma renda adequada ao seu rendimento; - Promover a criação de uma Lei de Bases da Habitação, capaz de regulamentar e materializar os princípios subjacentes ao direito constitucional à habitação. Apelamos, por conseguinte, ao cumprimento da Constituição da República Portuguesa e à salvaguarda dos mais elementares direitos humanos, estruturantes de um Estado e de uma sociedade verdadeiramente democrática, que consagram, respeitam e promovem a dignidade humana.

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