A 3 de Outubro, um barco no Mar Mediterrâneo a curta distância da ilha italiana de Lampedusa transportando mais de 500 imigrantes refugiados foi deixado a afundar. Tanto quanto se sabe, só 155 pessoas sobreviveram. A maioria dos passageiros era da Eritreia e da Somália.
Os mergulhadores ainda andam à procura dos corpos dos desaparecidos. Experimentados em lidar com tragédias, eles mesmo assim ficaram horrorizados com a visão de corpos tão densamente empacotados no porão que ainda estão de pé, estando o cabelo de uma mulher a flutuar pela janela do barco a 47 metros debaixo de água. Um mergulhador disse que não conseguia afastar a imagem dos mortos com os braços levantados como que a pedir ajuda. Um outro começou a chorar quando descreveu a retirada do corpo de uma criança cuja cara depois bateu nele próprio, dizendo que poderia ter sido o seu próprio filho.
Alguns dos sobreviventes nadaram até à costa, a um quilómetro de distância. Outros agarraram-se a garrafas de água vazias para conseguirem flutuar até terem sido finalmente recolhidos, após três horas no mar. Não é claro porque é que o barco não encontrou um ponto para atracar. Alguns relatos dizem que a baía é demasiado rochosa para desembarcar. Algumas pessoas dizem que os passageiros atearam um fogo para chamar a atenção para o seu infortúnio, que depressa se propagou e o barco afundou. Os sobreviventes também relataram ter visto alguns barcos ao longe e um barco com uma luz que se acercou e depois se foi embora.
O primeiro pescador a chegar aos destroços em chamas deu o alarme. Ele disse que alguns dos 47 migrantes que retirou do mar tinham sido despojados das suas roupas, provavelmente pela corrente. Outros pescadores que chegaram ao local ficaram subjugados pela emoção, à vista de um mar cheio de refugiados a flutuar acenando-lhes com os braços e gritando por ajuda. Eles perguntaram como é que se pode virar as costas quando se vê uma pessoa que precisa de ajuda? É inconcebível que um pescador de Lampedusa tenha fingido não ter visto nada. Um outro pescador disse ter ferido o braço a erguer para o seu barco 18 corpos empapados em querosene. Uma pessoa disse à BBC que a guarda costeira impediu de facto os esforços de salvamento. «Eles recusaram-se a levar para bordo algumas pessoas que já tínhamos salvado porque disseram que o protocolo o proibia», disse ela à BBC.
Normalmente, os migrantes em busca do estatuto de refugiado têm telemóveis para contactarem as autoridades quando chegam à costa, mas eles foram forçados a deixá-los na Líbia, onde estiveram confinados durante dois meses, antes de serem embarcados por contrabandistas desumanos que cobraram milhares de dólares por pessoa por esta travessia perigosa.
No dia do funeral, 10 barcos de pesca atiraram ramos de flores sobre a mancha onde o barco ainda está submerso, em honra das restantes vítimas sepultadas no porão. Um dos barcos na zona içou uma bandeira negra a flutuar ao vento com uma única palavra inscrita, «Vergonha!». Algumas crianças no funeral levavam uma faixa a afirmar «Basta! Não há nenhuma desculpa para a indiferença!».
Lampedusa fica muito mais próxima do Norte de África que de Itália. Para os migrantes que tentam entrar na Europa, o Mediterrâneo, paradoxalmente um dos volumes de água mais vigiados do mundo, é um epicentro da morte. Esta é a descrição usada por organizações não-governamentais que apoiam o direito dos imigrantes ao asilo na Europa. O grande número de mortes evitáveis tornou este incidente específico capaz de atrair a atenção da comunicação social mundial, causando uma efusão de pesar e indignação.
Parte do que foi inabitual nesta tragédia foi o grande número de mulheres e crianças que morreram. As mortes neste perigoso trajecto ocorrem com regularidade, mas a maioria das vezes em números menores, e sobretudo não noticiados – e principalmente de jovens. Quando os corpos deles não desaparecem, por vezes dão à costa em praias de resorts turísticos em Espanha ou na Grécia. Muitos migrantes fazem a travessia em barcos pequenos e sobrelotados que não têm sequer remos adequados para remarem. Antes deste desastre, a tragédia mais notória que chamou a atenção generalizada foi a do barco «abandonado à morte» só com 11 sobreviventes num total de 72 pessoas, durante a guerra da NATO na Líbia. A culpa por ignorar deliberadamente essa tragédia foi claramente posta na NATO por um relatório do Conselho da Europa (ver o SNUMAG de 2 de Abril de 2012).
Durante os últimos vinte anos, um total estimado de 20 000 vidas foram perdidas quando atravessavam o Mediterrâneo, 1500 só em 2011. A Itália, a Espanha e a Grécia têm sido a porta de entrada mais próxima da Europa, mas para os que tentam ir para norte é apenas o último trajecto de uma jornada difícil e perigosa para um migrante. Abdul, um jovem somali de 16 anos que sobreviveu a este último trajecto, disse que o pai dele tinha pago um total de 7500 dólares aos contrabandistas para o levarem até Lampedusa, onde ele tinha chegado de barco há 12 dias – cerca de seis meses depois de sair de Mogadíscio. «Eu quero estudar. Eu quero um futuro», disse ele à Reuters. Em muitos casos, há famílias inteiras que juntam os seus recursos para enviarem para norte um membro da família, o qual, em troca, manda de volta dinheiro para ajudar a família.
Para os que sobrevivem à jornada, se não receberem asilo, serão forçados a viver na sombra da sociedade e enfrentam frequentemente a brutalidade às mãos da polícia e de bandos de direita que operam com total impunidade, tal como aconteceu em Abril passado na Grécia contra trabalhadores agrícolas do Bangladesh.
Os advogados locais alegam que as leis italianas que visam restringir a migração ilegal acabam por dissuadir os barcos de ajudarem os migrantes em angústia no mar. Um barco comercial que recolheu pessoas que estavam num bote que flutuava no meio do Mediterrâneo foi forçado pelo governo italiano a levá-los de volta à Líbia. Há disputas entre diferentes sectores das autoridades locais e dentro da União Europeia sobre a responsabilidade por salvar os imigrantes. Navios cheios de imigrantes pobres têm saído da Europa há séculos – e a Itália é apenas um exemplo – mas agora nenhum país europeu está disposto a suportar as despesas de operações mínimas de clemência mandatadas pelo direito internacional (os 27 países da União Europeia alocaram um total de quatro navios, dois helicópteros e dois aviões para as operações de salvamento no Mediterrâneo), já para não falar em abrirem os seus braços a migrantes desesperados. Pelo contrário, abertamente ou por insinuação, eles tentam fazer com que os imigrantes partilhem a culpa pelo desemprego nos seus países, causado pelo sistema capitalista-imperialista mundial e agravado pela recente crise financeira.
Os sobreviventes desta tragédia serão investigados por «imigração clandestina», um delito que pode resultar numa multa de 5000 euros. Isto coloca o governo italiano na mesma linha que os contrabandistas criminosos, dando-lhes a sua «quota-parte» na extorsão destes imigrantes.
Segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), apesar dos perigos que as pessoas enfrentam, de 1 de Janeiro a 30 de Setembro deste ano, 30 100 migrantes chegaram a Itália em barcos vindos do Norte de África. Neste curto período histórico em particular, os maiores grupos vieram da Síria (7500), da Eritreia (7500) e da Somália (3000). A Eritreia já foi uma colónia italiana e o governo italiano deslocou 70 000 pessoas, entre as quais operários e camponeses pobres italianos, para aí viverem. A Somália foi primeiro uma colónia italiana e depois britânica, e os EUA têm feito o seu melhor para afirmarem os seus interesses sobre o país. A Síria foi ocupada pelos franceses, e todas as principais potências imperialistas estão a atear as chamas da horrenda situação local.
A discussão que está a decorrer em torno desta desnecessária perda de vidas deve colocar algumas questões mais profundas sobre o tipo de sistema global em que vivemos que leva as pessoas para fora das suas pátrias, e que torna o mundo no lugar distorcido que ele é. A experiência tem mostrado – e agora vimos isso demonstrado uma vez mais – que os estados europeus prefeririam que todos estes imigrantes se afogassem, de preferência longe das suas costas, onde iriam morrer sem serem vistos.
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